1


DO CORPO AO PENSAMENTO
ou da arquitetura como função à arquitetura como relação


A UNIDADE COMPLEXA
A Arquitetura é um ‘todo difícil’. A afirmação de Robert Venturi faz parte do tratado em que o arquiteto toma posição a favor das complexidades e contradições da arquitetura de períodos anteriores aos anos marcados pelos cânones estabelecidos pelo movimento moderno. Escrito em 1966, Complexidade e contradição [VENTURI, 1995] manifesta uma postura diferente e divergente da atitude moderna caracterizada até aquele momento, principalmente até os anos do segundo pós-guerra. Por marcar uma tomada de posição nova, é considerado como um dos mais importantes manifestos da arquitetura do século XX [JENCKS, 1997].

A arquitetura é um sistema, uma linguagem complexa constituída por relações equívocas, às vezes não percebidas por estarem contidas nos pormenores de uma evolução sincopada, em que ordenações são desafiadas e cedem lugar às incertezas que validam significados ambíguos e contraditórios. Numa abordagem diacrônica, a arquitetura, assim como toda a arte, se relaciona com o passado imediato por contradição, como insurgência ou negação. Numa visão sincrônica é possível perceber momentos de turbulência nascidos na ordem estabelecida provocando sua instabilidade e descontinuidade [FERRARA, 1993: 182-192]. Reconhecendo, assim, a complexidade do significado da arquitetura, Venturi afirma que os objetos arquitetônicos formam um ‘todo difícil’ [VENTURI, 1995: 121-147]. Para transgredir a ordem estabelecida, no sentido de propor uma alternativa à linguagem moderna, Venturi indaga se não seria necessário:

“procurar um significado nas complexidades e contradições de nosso tempo e reconhecer as limitações de sistemas? São essas, penso eu, as duas justificações para transgredir a ordem: o reconhecimento de variedade e confusão dentro e fora, no programa e no ambiente, e na verdade em todos os níveis de experiência; e a limitação irrevogável de todas as ordens compostas pelo homem. Quando as circunstâncias desafiam a ordem, a ordem deve ceder ou quebrar: anomalias e incertezas dão validade à arquitetura”. [VENTURI, 1995: 44]

Venturi faz um trocadilho sobre a máxima de Mies Van der Rohe, que é bastante representativo dos cânones da arquitetura moderna. O ‘less is more’ Miesiano que de alguma maneira sintetiza os intentos e as conquistas funcionais expressas pela forma absoluta e pelo espaço contínuo da arquitetura do movimento moderno, se transforma, pelos olhos perceptivamente críticos e plurais de Venturi, em ‘less is bore’. Transposto para o português, o trocadilho perde um pouco de sua graça e sentido, uma vez que em inglês more e bore compartilham a mesma sonoridade, o mesmo número de letras, sendo apenas uma diferente. A tradução brasileira da editora Martins Fontes [1995], traz: ‘menos é uma chatice’, muito distante da máxima de Mies em língua portuguesa: ‘menos é mais’. Talvez a aproximação seria melhor utilizando um substantivo menos usual, com significado mais ambíguo e menos direto, mas que pela sonoridade garantiria uma relação mais direta com o original. Ao ‘menos é mais’ poderia se contrapor ‘menos é maça’, de maçar (enfadar, amolar), de maçante (aborrecido, tedioso), de maçada (fastidiosa, cansativa). O equívoco, é claro, estaria em ter que explicar o que significa a palavra escolhida, uma vez que é pouco conhecida, nada usual e com significados ambíguos: maça também pode ser arma, pilão; maçar pode ser golpear; maçante pode ser cacete; maçada pode ser trapaça. Porém, no mínimo, ‘menos é maçante’, ainda que não tenha a mesma qualidade de trocadilho que se percebe na língua inglesa, more trocado por bore, é mais aberto a interpretações e, por conseqüência propenso a várias compreensões.

Esse pequeno e falho exercício de tradução, da procura de pormenores que possam atribuir significados a uma expressão que os contém em profusão, dada a sua extensão e pertinência histórica, um esmero que pode soar como fora de lugar, equívoco, ilustra as intenções de Venturi. O que ele quer é contrapor à arquitetura moderna, à sua homogenização, ao seu academicismo, uma abordagem inclusiva e atenta aos detalhes. E o faz através da leitura e análise visual de obras dos mais diversos períodos da história. Uma leitura baseada nos significados dos elementos arquitetônicos, na valorização da diferença, dos pormenores que resgatam o valor simbólico e a tradição, que aceitam as complexidades existentes nas obras e exploram as contradições das articulações de elementos e espaços como artifícios de linguagem.

Esse manifesto da arquitetura equívoca [MONTANER, 1993], se funda na arquitetura como fato visual, como fato perceptivo, como meio comunicativo cuja mensagem se faz de significados ambíguos. Ao longo do livro, Venturi aborda temas que enfatizam a complexidade e a contradição da arquitetura que podem ser interpretadas nas ambigüidades de elementos que expressam mais de um significado, na capacidade de espaços possuírem duplas funções, nas transgressões das linguagens de cada escola arquitetônica.

Venturi faz referência aos vários campos da cultura, entre outros a arte Pop, a poesia de T.S. Elliot e as teorias sobre complexidade de Herbert Simon [1969]. Ele manifesta sua preferência:

“por uma arquitetura complexa e contraditória, baseada na riqueza e na ambigüidade da experiência moderna”

e mais adiante,

“ao aceitar a contradição, assim como a complexidade, tenho em vista a vitalidade, tanto quanto a validade”. [VENTURI, 1995: 6-7]

Dos arquitetos modernos seus contemporâneos, admira Kahn, com quem trabalhou, Aalto e Corbusier, arquitetos que, segundo ele, rejeitaram a simplificação redutora e encontraram na lógica da razão elementos para a criação de espaços que em sua aparente simplicidade escondiam uma ordem complexa.

Sua posição não se resume a uma simples reação ao moderno mas leva em conta a necessidade de rever os meios de expressão da arquitetura e reconhecer a complexidade crescente de programas com extensos problemas funcionais e, por outro lado, compreender os programas em que a produção da arquitetura envolve meios super simples, mas a finalidade, como parte da experiência contemporânea, pode ser extremamente complexa [VENTURI, 1995: 8-9]. Além disso, Jencks [1987, 87-89; 154-160] considera que Venturi foi o primeiro arquiteto a utilizar elementos de caráter decorativo de maneira contestadora e assim teria inaugurado uma arquitetura comunicativa.

Mas por que Venturi pôde escrever sobre uma outra maneira de ver a arquitetura? O que o levou a reconhecer as ambigüidades, as incertezas, as relações que perfazem a difícil unidade do todo arquitetônico? Por que surgiu a possibilidade desse outro olhar em meados do século XX? Em que contexto estava inserida tal proposição? Sobre que conceitos se apoiou? Que outros acontecimentos cercam o campo da arquitetura nesse período?

A DOMINANTE EM MUTAÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, transformações significativas ocorrem nos campos da ciência, da tecnologia e da arte. Estas transformações, que repercutem e se desdobram ainda hoje, alteram a visão de mundo calcada nos princípios do racionalismo que tem origem na cultura clássica. Cabe, portanto, questionar esta outra visão de mundo que se estabelece sobre aquela dominante.

A idéia de moderno, seu ideal clássico, está calcado no cartesiano, no ordenado, no absoluto. Sua ideologia, seu pensamento é determinado por leis estáticas e imutáveis. A visão de mundo é linear, centrada e orientada pelos princípios da causalidade e determinação. Essa é a cultura dominante. Segundo Roman Jakobson [1977: 77-85] a dominante é imperativa e hierarquizante. Apesar de ser um conceito desenvolvido para a análise da poética, é considerado fundamental e dos mais importantes da teoria formalista russa e pode ser aplicado a outros campos do conhecimento. Jakobson define a dominante como:

“elemento determinante de uma obra: ela governa, determina e transforma os outros elementos. É ela que garante a coesão da estrutura. A dominante especifica a obra”. [JAKOBSON, 1977: 77]

O significado do conceito é mais amplo do que a simples aplicação na leitura e análise de uma obra podendo alcançar um domínio mais vasto. Ao analisar o conceito de dominante em seu livro A Estratégia dos Signos [1981], Lucrécia D’Aléssio Ferrara observa que:

“assiste-se, pois, na caracterização de uma dominante, a uma evolução que atinge a produção de um autor, as relações entre autores ou entre diversas artes e esta evolução caracteriza uma possível leitura da história da arte”. [FERRARA, 1981: 40-41]

E mais adiante afirma que, para a arte moderna é a linguagem que se torna dominante. Linguagem aqui entendida como sistema de signos que medeia a relação de conhecimento do mundo. Mediação como processo dinâmico, reflexivo, que resulta em representações que evoluem na medida correspondente ao processo de mudanças culturais. Seguindo essas indicações, seria possível imaginar uma hierarquia, uma dominante entre as diversas visões de mundo que moldam a cultura e seus signos. Poder-se-ia indagar se o mesmo movimento evolutivo se aplicaria às artes e à arquitetura e suas manifestações baseadas nos princípios da cultura. É Ferrara quem lança a pergunta:

“Seria possível admitir uma evolução entre as artes que caminhasse de uma série basicamente lógica e linear para outra, eminentemente analógica e relacional?” [FERRARA, 1981: 41]

Se esta cultura se transforma ao substituir o desejo de objetividade e estabilidade no sentido de ordenar as formulações criadoras através do pensamento sistêmico, faz-se necessário definir, ou ao menos delinear, qual a ordem ou estrutura dominante se desmonta e, principalmente, que sistema ou organização se funda em seu lugar, permitindo à arquitetura novos desdobramentos. A dificuldade de delinear esse outro contexto cultural está precisamente na natureza do pensamento que passa a se impor como dominante. Sua definição pode ser tão imprecisa e aberta quanto a freqüência e a amplitude com que oscilam e variam seus constituintes. O caráter da dominante passa a ser o movimento e a mudança.

O MODERNO EM MOVIMENTO
Várias são as leituras realizadas sobre a arquitetura do período posterior à segunda guerra mundial. Várias também foram as designações na tentativa de caracterizar essa produção: O último capítulo da arquitetura moderna, de Leonardo Benévolo [1985], Depois do movimento moderno e A modernidade superada, de Josep Maria Montaner [1993; 2001] ou O lugar da arquitetura depois dos modernos, de Otília Arantes [1993], são apenas alguns exemplos. Historiadores, críticos e analistas, arquitetos ou não, não importa suas filiações e referências, a favor ou contra o movimento, seus protagonistas e suas concepções, todos concordam com o fato de que, na segunda metade do século XX, algo mudou na produção arquitetônica. De fato, o contexto que se desenha após o conflito na Europa, difere bastante daquele configurado e consolidado a partir da segunda década daquele século.

A partir dos anos 30, motivada pelas vanguardas, a arquitetura dos primeiros anos do século XX postula-se internacional. O conjunto de suas obras e arquitetos, pela motivação e objetivos comuns, passa a ser designado como movimento moderno. Dois fatores podem ser apontados como responsáveis pela internacionalização dos princípios racionalista e funcionalista adotados pela arquitetura moderna como modelo a ser propagado e defendido. Por um lado os C.I.A.M., Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que ocorrem a partir de 1928, reunindo os expoentes europeus em torno de temas centrais para a unidade do ideário moderno e, por outro lado, a exposição promovida por Henry-Russel Hitchcock e Philip Johnson em 1932, no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, reunindo as obras mais significativas da produção arquitetônica da Europa e dos Estados Unidos [BENEVOLO, 1985: 15-22; FRAMPTON, 1997: 327-339]. O primeiro serve como espaço de discussão e sedimentação das idéias propulsoras da ideologia da arquitetura moderna, de seu projeto utópico; o segundo aparece como difusor da imagem dessa arquitetura como linguagem codificada a ser apreciada, apreendida e reproduzida. Um atribui ao projeto utópico o caráter de movimento e o outro libera a sua internacionalização.

Assim, o projeto utópico do movimento moderno assume um duplo caráter. Por um lado, ao determinar os elementos e as combinações de sua linguagem, pode se adaptar por toda parte tomando cores das mais diversas, de todos os lugares e de nenhum. Utópico, sem lugar. Por outro lado, esse projeto utópico é transformado em programa e deve ser alcançado inexoravelmente. De projeto teleológico como processo integrado concebido a par do devir da história, a utopia se transforma em programação, pré-ordenação calculada de todas as soluções regidas pela mesma determinação visando o mesmo fim. O projeto é, então, um fim em si mesmo [ARGAN, 1992: 251-267; 2001: 7-63]. A partir daí é possível compreender a diferença e a oposição entre modernismo e modernidade.

“Na caracterização de um conceito, o Modernismo é um programa que deseja controlar o pensamento e a ação dos homens dentro de uma matriz universal criadora de uma felicidade inexorável. (...) A modernidade sugere uma outra postura epistemológica na qual o homem e sua razão enfrentam e aderem a um mundo em transformação constante mas indeterminada porque depende da mútua interação homem / natureza e das possíveis, diversas, mas não necessariamente respostas provocadas por essa interação”. [FERRARA, 2000: 173]

Assentado o referencial do que se constituiria como arquitetura moderna, identificado, principalmente, na obra de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van der Rohe e Frank Lloyd Wright, embora esse último sem uma participação tão efetiva para sua sustentação, o movimento moderno preconiza princípios e cristaliza métodos e objetivos. A linguagem da arquitetura moderna se propaga pelos continentes e países, encontrando reações e prosseguimentos diversos. Começam a aparecer resoluções particulares e interpretações contextuais dos princípios preconizados. Ao disseminar seu ideário e sua linguagem por todas as partes, o moderno como movimento, abriu possibilidades para expressões locais e regionais, ao mesmo tempo em que estabeleceu uma gramática que, enquanto se desgasta, também se esgarça e ganha novos sentidos.

Depois da segunda guerra, as utopias dos anos 10 e 20 dão lugar às distopias. Os arquitetos percebem que os ideais estabelecidos e perseguidos ao longo das quatro primeiras décadas do século não serão plenamente satisfeitos. A dimensão teleológica do projeto moderno, seu caráter programático e utópico de redimir os males sociais através da arquitetura, instaurando através desta a democracia e tornando os homens livres, perde de vista suas motivações e razões. As condições de desemprego e recessão do pré-guerra, de descontentamento social e instabilidade política, foram agravadas pelos bombardeios que resultaram na destruição das principais cidades européias. As políticas de auxílio a reconstrução impostas no pós-guerra procuraram se aliar à necessidade de recuperação de um estado de bem estar social, facilitando a preservação da ordem capitalista antes ameaçada. A reconstrução da Europa e sua reordenação política possibilitaram a ampliação do fluxo de investimentos e de comércio mundial, permitindo a consolidação do poder político apoiado na idéia de uma democracia econômica de massa [HARVEY, 1993: 71-112].

A racionalidade técnica e burocrática do sistema político e econômico posta em prática encontrou no princípio do funcionalismo da linguagem da arquitetura moderna, um aliado para a necessidade pragmática de sua economia de produção. As soluções da arquitetura moderna para esses dilemas do pós-guerra, suas contribuições com projetos de habitação coletiva e recuperação dos tecidos urbanos, funcionaram como modelo ideal do pensamento econômico que, com o passar do tempo, se mostrou hegemônico [HARVEY, 1993: 121-134]. O otimismo dos arquitetos com o projeto utópico lapidado nas décadas anteriores cede lugar ao pessimismo e à consciência das limitações do ideal de liberdade que revestia a arquitetura até então.

AS ORDENS DA RAZÃO
Seria desnecessário e até redundante discorrer sobre os conceitos que determinam a arquitetura moderna até meados dos anos 50 do século XX, tarefa já cumprida inúmeras vezes de maneira competente. Mas para demonstrar a passagem que se opera na dominante, uma definição se faz importante para comparar com aquilo que toma seu lugar. Essa definição se vale de três elementos que podem ser confrontados: até os anos 50, aproximadamente, teríamos o tripé função, estrutura e ordem, em contrapartida à tríade relação, sistema e organização que começa a se impor na segunda metade do século.

O racionalismo pressupõe uma ordem harmônica e precisa, em que cada elemento da estrutura tem sua função clara e definida. A clareza da disposição dos elementos, que têm seus objetivos determinados a priori, garante a precisão da informação, decorrendo daí a noção de funcionalismo. A estrutura é, portanto, o próprio conteúdo, uma vez que ordenada logicamente, em que cada função é compreendida na sua interação com o todo. Assim, a forma segue a função, que se traduz em qualidade [FERRARA, 1981: 66-72].

A arquitetura moderna dentro desse contexto, desenvolve uma linguagem afinada com esses preceitos. As pesquisas de novos materiais construtivos, como o ferro, o vidro, o aço e o concreto, e a conseqüente pesquisa de sua resistência física [ZEVI, 1945: 18], aliada ao sistema de representação matemático e linear da perspectiva que representa a estrutura hierarquizada da cultura [FERRARA, 2000: 163-174], leva a arquitetura a se despir de qualquer acessório em favor do significado da própria estrutura e de sua expressa racionalidade e funcionalidade. A arquitetura moderna

“deve falar através da pureza geométrica de sua exclusiva estrutura arquitetônica”. [FERRARA, 1981: 13]

O moderno com origens no Renascimento, atravessa e consolida raízes nos séculos XVIII e XIX com a ascensão da burguesia e a sociedade industrial. A atitude moderna é marcada pela afirmação das certezas e pela busca da ordem, imbuída pelas faculdades da razão. Tais concepções dobram o século XX ressoando pelos anos das vanguardas revolucionárias que, em sintonia com os novos paradigmas lançados por vários campos do conhecimento, ainda se ressentem de dogmas cristalizados ao longo dos séculos precedentes. A teoria da relatividade, a mecânica quântica, o princípio de indeterminação, a segunda revolução industrial eletroeletrônica convivem com as certezas inabaláveis da ordem racionalista.

A ORGANIZAÇÃO DAS INCERTEZAS
A partir da segunda metade do século XX, outra forma de ver e se relacionar com mundo pode ser descrita como indefinida e aberta, carregada de nuances, processual e relacional. Assim, reconhecedora de suas imprecisões, turbulências e oscilações. Fundadora de uma organização repleta de complexidades.

As façanhas científicas do início do século XX, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, apesar de seu caráter revolucionário, ainda estavam filiadas à tradição clássica. Essa tradição foi posta em questão pelas descobertas experimentais da física a partir dos anos 50: a instabilidade das partículas, as estruturas de não-equlíbrio, a evolução do universo. Conceitos novos como caos e atrator estranho aparecem como instrumentos de pensamento, que permitem aproximações novas entre campos distintos [PRIGOGINE e STENGERS, 1992: 11-21].

A estabilidade e a determinação da visão clássica do mundo, passa a dar lugar a percepção da complexidade das relações, implicando em organizações sistêmicas, abertas ao reconhecimento da ocorrência de processos indeterminados e irreversíveis. No século XIX, quando Boltzmann define a entropia através da transposição da teoria evolucionista de Darwin para a física, descobre a irreversibilidade dos processos, que aumentam em complexidade na medida de sua evolução. Desde então, a simetria da flecha do tempo é quebrada, estabelecendo uma clara distinção entre passado e futuro. Estamos diante do fim das certezas [PRIGOGINE, 1996].

A cibernética e a teoria da informação assimilam o princípio da entropia, trazendo para as ciências humanas e as artes a dimensão do relacional e do processual [FERRARA, 1993: 167-192]. Segundo Prigogine e Stengers [1992: 57] a definição de relação faz parte da própria definição de sistema, que assume diferentes regimes ou estados. Esses regimes ou estados permitem precisar as relações entre o todo e as partes que o caracterizam, num processo dinâmico e complexo. Por sua vez, os sistemas em relação pressupõem uma lógica de organização. A organização se estabelece por relações sistêmicas. Segundo Ferrara:
“toda organização é lógica, é linguagem produzida por signos que, por sua vez, são representações dessa específica maneira de organizar. Essa lógica ou linguagem é tão múltipla, variada e complexa quantos e como forem os sistemas pelos quais se organiza”. [FERRARA, 2000: 153]

Em lugar de função, relação, em lugar de estrutura, sistema, em lugar de ordem, organização. Começa a surgir uma nova racionalidade, capaz de reconhecer ambigüidades, complexidades e contradições. Delimitado este contexto, é possível se debruçar especificamente sobre a arquitetura e suas transformações.

UMA NOVA RACIONALIDADE
De todas as artes talvez seja a arquitetura a que menos pode prescindir da racionalidade, devido ao seu caráter pragmático e construtivo. Entretanto, o conceito de racionalismo não é constante na história da arquitetura, sofrendo mudanças dependendo do período e das influências da cultura dominante. Uma definição mais genérica do conceito deve ser assumida, que considera ser a arquitetura o resultado da aplicação de certas regras estabelecidas pela razão. Por volta dos anos 50, há uma “liberalização” das concepções racionalistas que, sem descartar o racionalismo como fundamento, procura humanizá-lo [COLQUHOUN, 2004: 67-95].

Essa procura por humanizar a razão passa, entre outras coisas, por abrandar os paradigmas trazidos no bojo da industrialização, que permitiu forjar uma linguagem e uma identidade para a concepção da arquitetura baseada na funcionalidade das estruturas. Um desses paradigmas, o funcionalismo, tão caro quanto essencial à conformação da linguagem do movimento moderno, é também tão variado em acepções quanto os racionalismos em arquitetura. Como chamou a atenção Peter Collins, várias analogias foram desenvolvidas a partir da idéia de funcionalismo, sendo as mais importantes as analogias com a mecânica e com a biologia [COLLINS, 1970: 151-169].

Essas duas analogias abrem duas vertentes da arquitetura moderna que, de maneira geral, se contrapõem. Na Europa do entre guerras, pelos motivos ideológicos e práticos da conjuntura econômica, política e social, prevalece a analogia mecânica, maquínica. Foi Bruno Zevi, nos anos 40, quem apontou para a possibilidade de mudanças em outra direção ao criticar a arquitetura moderna, fria, programática e anônima. Em seu ensaio Por uma arquitetura orgânica [ZEVI, 1945], que indica no subtítulo tratar-se de uma investigação sobre o desenvolvimento do pensamento arquitetônico nos últimos 50 anos, defende o surgimento necessário de uma arquitetura orgânica. Tal arquitetura, aberta e humanizada teria em Frank Lloyd Wright um de seus atores mais representativos.

Entretanto, o caso mais significativo dessa humanização da razão, ou pelo menos um caso que toma um viés menos evidente dessa nova racionalidade que surge e começa a se afirmar como uma possibilidade para a concepção da arquitetura moderna, talvez seja Le Corbusier. Embora tanto discurso quanto obra contenham uma certa dose de ambigüidade, há uma mudança fundamental em Corbusier, um momento de transição, uma passagem que mescla e funde a analogia da máquina, funcional, com a analogia do corpo, relacional.

Entende-se por analogia a determinação de uma coisa pelo conhecimento de outra, por semelhança, sendo que a analogia pode ser compreendida como a própria identidade dessa relação. Como diz Myrna Nascimento [2002: 12-14] em sua tese Arquiteturas do pensamento, os elementos associados por analogia, se relacionam de forma singular com sua sintaxe, com seu próprio modo de se constituir, através do pensamento. Segundo Paul Valéry [1999: 139], essa faculdade de comparar dois objetos seria o termo inferior da analogia. Ao definir a analogia ao longo de uma série de páginas do ensaio Introdução ao método de Leonardo da Vinci, [1999: 134-145 e ss.], Valéry diz que:

“é precisamente apenas a faculdade de variar as imagens, combiná-las, fazer coexistir a parte de uma com a parte da outra e perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas. E isso torna indescritível o espírito, que é seu lugar. As palavras perdem sua virtude. Lá, elas se formam, brilham diante de seus olhos: é ele que nos descreve as palavras. O homem leva, assim, visões, cuja força faz a dele. Relaciona sua história a elas. São seu lugar geométrico.”  [VALÉRY, 1999: 135]

Essa faculdade de relacionar, de associar, seria, ela mesma, uma analogia do pensar em si, da estrutura do pensamento, pois, ainda segundo diz Valéry ao comentar seu próprio ensaio,

“todo pensamento exige que se tome uma coisa por outra, um segundo por um ano”  [VALÉRY, 1998: 243],

pois o pensamento

“não passa de uma tentativa de passar da desordem para a ordem, precisando das ocasiões da primeira – e de modelos da segunda”  [VALÉRY, 1999: 143]

É interessante estender essa idéia de pensamento como analogia, relembrando suas raízes latinas [CHAUÍ, 2002: 152-153]. Tanto pensar como pensamento derivam do verbo pendere, que significa suspender, ficar em suspenso. Portanto, pensamento é esse momento em que os julgamentos ficam suspensos, permitindo associar coisas por analogia. No estado de suspensão o pensamento está embebido com as qualidades da analogia. Diferente do cogito Cartesiano, que animou os pressupostos da ideologia moderna, que tem dupla raiz, também no Latim, nos verbos agere: empurrar para diante de si e agitare: empurrar para frente. Cogitar enquanto pensar é colocar algo diante de si para examinar, o que pressupõe o conceito como parte integrante dessa postura, significando uma atitude racionalizada.

DAS MÁQUINAS MECÂNICAS ÀS MÁQUINAS DO PENSAMENTO
Sem perder de vista Corbusier, suas mudanças de concepção e suas experimentações de linguagem, é necessário dizer que a própria idéia de máquina e a concepção de sua natureza mecânica passa por transformações e sofre alterações significativas nos anos vizinhos ao pré e ao pós-segunda guerra. Será quase impossível saber se essas idéias influenciaram ou não o pensamento e a obra do arquiteto, mas uma breve explanação servirá de suporte para demonstrar a humanização da razão, da redefinição da máquina como paradigma e sua relação com o homem, com o corpo, com a vida, presente em alguns dos projetos de Corbusier do pós-guerra.

De fato, tanto máquinas quanto seres vivos, sua concepção e a compreensão de sua natureza, estão em transformação. As máquinas e suas funções automáticas comandadas por instruções objetivas, os seres vivos e seu comportamento associativo capaz de fazer escolhas e decisões. As pesquisas sobre os dois campos se encontram no estudo do pensamento humano e nas possibilidades de dotar máquinas de comportamentos humanos, simulando seres vivos. Nesse cruzamento surge uma nova disciplina, as ciências cognitivas [DUPUY, 1995].

Um dos responsáveis por novas idéias no sentido de superar a relação meramente funcional entre máquinas e seres vivos, foi Norbert Wiener. Matemático, Wiener cunhou o termo ‘Cibernética’ para designar o estudo dessas relações, tomando conceitos de vários campos: engenharia mecânica, eletrônica, ciência da computação, biologia, física, psicologia, neurociência e teoria da informação. Toma conceitos e os transforma de acordo com seus objetivos e sua aplicabilidade, aproxima o funcionamento das máquinas ao comportamento dos organismos vivos, configurando uma ciência interdisciplinar. Segundo Wiener [2000], o funcionamento físico de máquinas e seres vivos é similar quando se trata da tarefa de controlar a entropia através da retroalimentação. Ambos recolhem informação do exterior, através de receptores sensoriais, que são transformadas internamente e então utilizadas para o processo de funcionamento do organismo, que se auto-organiza e reorganiza.

O estudo de sistemas e a maneira pela qual se comunicam com o mundo exterior ou a maneira pela qual podem receber informações, a definição de entradas e saídas, compreender as regras que regulam tais sistemas; o processamento das informações pelo sistema e suas possíveis correções no sentido de automatizar suas ações, agora são passíveis de controle externo. Algumas das intenções iniciais da Cibernética ampliaram-se e ramificaram-se, infiltrando-se nos diversos campos do conhecimento, com maior ou menor presença, dependendo da época. Se não influenciou diretamente a mudança de paradigma da idéia da máquina, ao enredá-las aos seres vivos, dotou as máquinas de outro estatuto.

Poucos anos antes, em 1936, outro matemático, Alan Turing, definiu conceitualmente uma máquina capaz de executar qualquer tarefa. Tal máquina universal foi chamada de máquina de Turing. Descrita de forma simples, essa máquina compreende três órgãos: a máquina em si que pode assumir estados pré-definidos por uma lista limitada; uma fita de tamanho indeterminado, que representa a memória, dividida em casas que podem conter símbolos; e um cabeçote capaz de ler, escrever ou apagar informações e se deslocar para a direita, para a esquerda ou permanecer parado, dependendo das marcas em cada casa da fita. A máquina eventualmente muda de estado, mantém ou muda o conteúdo da casa lida, desloca o cabeçote à direita ou à esquerda ou permanece no mesmo lugar. Segundo Dupuy [1995: 28-38], a máquina de Turing é um modelo do pensamento simbólico.

Turing estabeleceu um princípio geral para o funcionamento dos computadores, apoiado no conceito matemático de procedimento efetivo. As instruções à máquina devem ser dadas passo a passo, como um algoritmo, numa sucessão que, à medida de sua execução, transforma o estado da máquina. Ou seja, um número finito de instruções não ambíguas garante atingir um objetivo ou executar, por uma série de combinações, uma série infinita de operações. Turing transformou o funcionamento da máquina em fórmula matemática, máquina em pensamento abstrato. Sua invenção demonstrou que qualquer tarefa, especialmente tarefas mentais, pode ser computada, executada por um computador, ao mesmo tempo em que mostrou que todo computador pode ser reduzido a uma máquina (universal) de Turing. Os computadores atuais nada mais são do que máquinas de Turing sofisticadas.

Se a máquina foi transformada em pensamento, em modelo matemático abstrato, aplicável a qualquer tarefa que se deseje executar mecânica e automaticamente, restava a Turing o desafio de provar que uma máquina seria capaz de resolver problemas e tarefas do pensamento, tomando seu lugar, ou entrando em concorrência com esse. Em 1950 Turing formula uma tese para provar que as máquinas podem pensar. Em um artigo controverso e polêmico, Computing machinery and intelligence, traduzido para o português como O jogo da imitação [TURING apud EPSTEIN, 1973], que se mantém como referência quando se trata de inteligência artificial, ciência da computação e ciências cognitivas, ele concebe um jogo, que chamou de jogo da imitação, feito a três: uma máquina, um ser humano e um interrogador. O interrogador, sem ter contato com os dois outros participantes, deve determinar quem é quem, através das respostas às suas perguntas feitas por um teletipo. A estratégia da máquina é induzir o interrogador ao erro, fazendo-se passar por humano [DUPUY, 1995: 38-41].

Enquanto as máquinas passam da natureza energética, da força propulsora e produtora para a natureza da informação e do processamento de sinais e abstrações matemáticas, com potencial para simular comportamentos humanos, os seres vivos, o corpo e a mente, a partir da Cibernética de Wiener, também passam a ser vistos como padrões de organização equivalentes às máquinas, como sistemas que operam a partir da interpretação e da reprodução de sinais [SANTAELLA, 2003: 181-183].

Assim, se a arquitetura do movimento moderno tem como paradigma a máquina mecânica, que atua como extensão das forças do homem incrementadas exponencialmente pela energia, a máquina que desponta como possibilidade para os anos do pós-guerra é um sistema de associar. Um pensar que estabelece uma máquina abstrata, um sistema que funciona baseado em um processo que relaciona informações passo a passo, capaz de executar tarefas mimetizando o raciocínio e até de funcionar simulando a mente humana. É máquina como extensão da mente, do pensamento. Da extensão mecânica à extensão cognitiva.

DA MÁQUINA COMO REFERÊNCIA AO CORPO COMO PARTIDO
Agora é possível olhar atentamente para Le Corbusier, procurando circunscrever o arcabouço cultural e científico que permite interpretar sua obra do imediato pós-guerra como representante da arquitetura complexa de que fala Venturi. Carregando os referenciais da arquitetura moderna que remete ao mundo clássico, mas imbuído das transformações científicas, Corbusier sintoniza uma nova dominante cultural e colabora para a realização de transformações na maneira de conceber a arquitetura. Jencks [2000] defende a tese de que Corbusier participa como protagonista em todos os capítulos da contínua revolução da arquitetura moderna. Não se pode afirmar até que ponto Corbusier ou outros arquitetos contemporâneos a Wiener tinham conhecimento de suas teorias, mas a máquina deixa de ser, gradativamente, a imagem mais-que-perfeita perseguida pela arquitetura, que assim se humaniza e se abre para outras relações e revoluções. Revolução no sentido disposto por Thomas Kuhn [2000], do conhecimento que caminha à medida que as teorias e as práticas, no caso da arquitetura, se tornam modelos e, com o passar do tempo, não respondem mais aos anseios sociais, tecnológicos e ideológicos de determinado momento.

É preciso lembrar que Corbusier foi um dos maiores defensores do pensamento cartesiano aplicado à arquitetura. Dizia que era necessário estabelecer padrões, standarts, modelos que permitissem a reprodução industrializada. Dessa forma, a estética moderna atenderia às necessidades sócio-econômicas do homem da época. Sua referência, repetida em diversos de seus escritos, era a produção industrial e suas realizações, as máquinas, as belas máquinas como o avião e o transatlântico.

Seu ideal era projetar, no primeiro momento, uma arquitetura funcional e econômica, industrializada e assim reprodutível em série, mas que deveria, necessariamente, ter tanto impacto quanto os feitos da engenharia mecânica. Corbusier acreditava que havia uma identidade ontológica entre ciência e arte, entre tecnologia e criação poética [COULQUHOUN, 2004: 159-182]. Essa é uma das crenças que o levam a declarar, em Por uma arquitetura, publicado em 1923, que a casa é uma máquina de morar [LE CORBUSIER, 2002]. A máquina de morar tinha como pressuposto um método ideativo baseado na modulação dos elementos constituintes do espaço. A organização do espaço e suas relações de medida seriam derivadas dos módulos construtivos aplicados a construção da arquitetura. Segundo Argan [2001: 93-102], uma das grandes invenções da arquitetura moderna foi o módulo-objeto, à diferença do módulo-medida da tradição clássica renascentista.

Essa vai ser uma das transformações no pensamento arquitetônico de Le Corbusier com a idéia do Modulor. Mudança e contradição. Uma passagem do pensamento arquitetônico que se desenvolve a partir do módulo-objeto, dos elementos standarts, para um pensamento que se processa por meio de variáveis, modulações combinatórias, baseadas nas dimensões do corpo. Essa passagem, como fluxo e não mudança, não exclui o pensamento anterior, mas agrega-o a um novo método ideativo, com a intenção de demonstrar ser possível associar produção em massa padronizada e liberdade de criação. [COULQUHOUN, 2004: 159-182]. Segundo Choay [1960], depois da II guerra a plástica de Corbusier adquire maior generosidade, as formas continuam simples, mas se combinam em maravilhosas invenções:
“Tendo apaixonadamente compreendido e amado a era da máquina na qual nasceu, e tendo construído para a maioria ele provou que é possível reconciliar estandartização universal e a mais pura poesia. (...) A maior contribuição de Le Corbusier para a arquitetura do século XX é provavelmente ter redescoberto o homem que se perdeu no desenvolvimento frenético da técnica.” [CHOAY, 1960: 22]

A repercussão da proposição do Modulor entre os críticos e os arquitetos não foi das melhores. A grande maioria considerou a proposta de Corbusier demasiado generalizante, acusando-o de idealizar um homem universal a partir de um homem particular. Para uns, seria uma manifestação tardia do legado clássico da busca de harmonia por procedimentos racionais [SUMMERSON, 1963, p.46]. Para outros é a tradução moderna do homem ideal que balizou a arquitetura moderna vanguardista até 1945 [MONTANER, 1993: 18].

Contudo, é possível encontrar vozes dissonantes ao largo do coro dominante. Em 1958, Argan em texto sobre a industrialização dos procedimentos da arquitetura, diz que o Modulor, assim como o módulo desde o Renascimento, não é uma forma básica, mas é uma virtualidade formal, porque é meio que antecede o desígnio. Desse modo, deve ser considerado como um princípio de projetação, baseado em um método ideativo, um sistema de relações e proporções. Um método considerado como procedimento, como meio que servirá para organizar o conjunto de dados que compõe o projeto, a idéia, o plano [ARGAN, 2001: 97]. Em escrito posterior, dos anos 60, sobre a crise da arte, Argan define o projeto como a forma específica da intenção e como tal, como escolha e designação de valores, define o método [ARGAN, 2001: 51-52]. Já Vincent Scully [2002: 100] diz que o homem de Corbusier descende do homem Vitruviano, mas ao contrário de sua estaticidade, o Modulor faz um gesto sem limites, em direção ao infinito, por se constituir como sistema de relações que permite a organização do espaço por inúmeras combinações.

O ESPÍRITO DO MODULOR
Uma entre as várias razões que motivaram Corbusier a inventar o Modulor foi a necessidade, no imediato pós-guerra, de reconstrução das cidades afetadas pelos conflitos. A industrialização teria um papel fundamental para que a arquitetura pudesse realizar essa tarefa, uma vez que exige a definição de padrões e standarts, modelos reproduzíveis em larga escala e padrão de economia. Nesse período, Corbusier mostra sua intensa vitalidade e preocupação social, ao investir sobre pesquisas de normatização da construção, que já vinha desenvolvendo desde os anos 10 e 20, como demonstrou com a Casa Dominó (1914) e com os trabalhos expostos no Pavilhão do Espírito Novo (1921). Durante a ocupação, sem encomendas de projetos, o arquiteto à procura de uma escala ideal para a arquitetura, o espaço e seus elementos, passíveis de produção industrial, pinta na parede de seu ateliê um painel com uma escala métrica de aproximadamente quatro metros para confrontar com seu próprio corpo. Um dos objetivos dessa experimentação era determinar uma medida que pudesse tomar o lugar, unir ou sintetizar as duas escalas de medida, métrica e polegada, que tantas dificuldades criavam para a realização de standarts de caráter internacional, possibilitando otimizar a reconstrução e a construção industrializada.

Para Corbusier, os dois sistemas de medida estão baseados em cifras abstratas, incapazes de qualificar um intervalo, apesar da analogia entre o sistema de polegadas com as partes do corpo. Tais sistemas de cifras representam o pensamento moderno, funcional, da racionalidade técnica e burocrática que abandonou padrões de medidas baseados em analogias humanas, como o Homem Vitruviano. Assim, entendia ser preciso encontrar um sistema de medidas que fosse o mais adequado para as necessidades da construção industrializada. Por outro lado, o arquiteto procura relações com outras linguagens e conclui que as linguagens visuais não contam com tecnologias de mensuração, como a música.

Esse não é um intento novo na história da arquitetura, como demonstrou Rudolph Wittkower [1958] ao estudar a arquitetura na idade do humanismo. A arquitetura do Renascimento se baseava nas proporções platônicas e pitagóricas que concebiam a harmonia por expressões algébricas que encontravam sua mais perfeita tradução na música. Se as relações harmônicas agradavam os ouvidos deveriam agradar também aos olhos e a analogia entre proporções auditivas e visuais formou um vasto campo de investigação para a época [WITTKOWER, 1958: 102-153]. Se a música era construída segundo regras admissíveis e efetivas, abertas à diversidade de possibilidades, simples, manipulável e acessível, baseadas em relações matemáticas, por que não a pintura e a arquitetura? Le Corbusier declarou por diversas vezes seu apreço pela matemática, que fez refletir na maneira como concebeu seus projetos. Nos anos 20 propôs que a lógica matemática deveria reger as manifestações modernas:

“A geometria é a base. (...) Ela nos traz as elevadas satisfações da matemática. (...) As artes e o pensamento moderno, depois de um século de análise, buscam mais além do fato acidental e a geometria os conduz a uma ordem matemática, atitude cada vez mais generalizada.” [LE CORBUSIER, 1992: VII]

Essa ligação com a matemática, que em arquitetura se traduz por dimensões postas em relação, através de modulações, estipulando sistemas de proporção definidos por medidas precisas, foi tema para um importante ensaio de Collin Rowe, em que o autor delineia similitudes entre a maneira de projetar e os respectivos resultados espaciais encontrados nas vilas de Palladio e Corbusier. [ROWE, 1976: 1-27]. Outra exploração desse tema foi realizada por Joubert Lancha [1999], na tese em que essas aproximações também se articulam com a arquitetura de Giuseppe Terragni.

Assim, por meio de uma série de pesquisas, Corbusier determina um sistema de medidas, uma série de relações matemáticas, baseadas na seção de ouro aplicada à figura de um homem de braço elevado. Estava criado o Modulor, batizado a partir da contração module (módulo) + seccion d’or (seção de ouro ou áurea). O otimismo de Corbusier com sua criação levou-o à publicação de um livro, em 1950, explicando como havia criado o Modulor, suas teorias e possíveis aplicações: O Modulor: ensaio sobre uma medida harmônica à escala humana, aplicável universalmente a arquitetura e a mecânica [JEANNERET-GRIS, 1950]. Dessa operação, surgem duas séries de medidas que tomariam o lugar dos dois padrões de medida, o métrico e o polegada, chamados de série vermelha e azul. Essas duas séries são séries de Fibonacci, em que cada termo é igual à soma dos dois termos anteriores: 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21 e assim sucessivamente. A relação desses números tende ao número de ouro. As duas séries podem ser cruzadas, estabelecendo relações de medidas também na proporção áurea [KRUGER, 1986: 23; BOESIGER, 1998: 86-87]. O objetivo de Corbusier era permitir, através de normas matemáticas, uma cadeia ilimitada de combinações e proporcionalidades que oferecessem possibilidades de criação tão organizada como a linguagem musical.

PENSAR COM OS OLHOS DA MENTE
Das pretensões de Corbusier, algumas são notáveis e merecem ser re-examinadas, confrontando com a crítica usual. Mais do que conceber a imagem de um homem universal, generalizando características particulares (chegou-se a dizer que a altura do Modulor era a altura média do detetive francês), Corbusier pretende instaurar um modelo universal que, unindo e fazendo a conversão entre dois padrões de mensuração, permitisse organizar o espaço em forma, construindo os objetos de uma cultura moderna [JEANNERET-GRIS, 1950: 50-69]. Ao contrário de um simples método, não é mera representação expressiva circunscrita aos limites do código, mas sim raciocínio baseado em relações matemáticas, processo de semiose derivado das qualidades contidas no Modulor como diagrama.

Esse raciocínio contido no Modulor e a sua definição como diagrama, devem ser detalhados. Para Peirce, raciocinar é forma de conhecer, de produzir conhecimento. Segundo ele há três tipos de raciocínio: indução, dedução e abdução. Dentre os três, a dedução se faz por um processo em que:

“Formamos na imaginação uma certa representação diagramática, isto é, icônica, um esqueleto tanto quanto possível. (...) Se for visual, será geométrico (...) ou algébrico (...). Esse diagrama, que foi construído para representar intuitivamente as mesmas relações abstratas expressas nas premissas, é então observado e uma hipótese sugere que há certa relação entre suas partes (...). Para testar isso, várias experimentações são feitas sobre o diagrama, que se modifica de várias maneiras. Esse procedimento (...) não lida com a experiência em curso, mas com a possibilidade ou não de certas coisas serem imaginadas. (...) Isto se chama raciocínio diagramático.” [PEIRCE, 1978, C.P.II: parágrafo 778]

É o tipo de raciocínio utilizado na matemática, que opera construções generalizantes, diagramas, formados de acordo com hipóteses [PEIRCE, 1978, C.P.III: parágrafo 560]. O que de fato distingue a matemática não é seu objeto, mas o método, que consiste em analisar tais construções, tais diagramas

“trazendo a representação esquemática das relações contidas no problema para os olhos da mente”. [PEIRCE, 1978, C.P.III: parágrafo 556]

Esses diagramas são ícones, que por serem hipóteses, representações hipotéticas ou derivarem delas, foram designados por Peirce como hipoícones. Ou seja, o diagrama é um hipoícone que representa as relações das partes de uma coisa por relações análogas às suas próprias partes [PEIRCE, 1978, C.P.II: parágrafo 277]. A força do diagrama está, além da matemática, em ser a base de todo o raciocínio.

“Todo raciocínio elementar, sem exceção, é diagramático. Ou seja, construímos um ícone de nossas hipóteses e as observamos. (...) Não apenas temos que selecionar os aspectos do diagrama que serão pertinentes observar, mas é também de grande importância retornar diversas vezes a certos aspectos. (...) Mas o ponto mais relevante consiste na introdução de abstrações adequadas. Com isso quero dizer que uma tal transformação em nossos diagramas que aquilo que caracteriza um diagrama pode aparecer em outro como coisa”. [PEIRCE, 1978, C.P.V: parágrafo 162]

A ANALOGIA DO CORPO COMO HIPÓTESE
O diagrama é, portanto, um ícone de relações, em que a ligação com seu objeto, ou as possíveis associações com outros objetos, se dá por analogia e similaridade, que pressupõe um raciocínio mais elaborado e criativo [FERARRA, 1993: 172]. E sua natureza é profundamente enraizada nos modos de pensar da matemática, pois está relacionada a hipóteses, experimentações, num processo de descoberta. Assim, o Modulor é um diagrama, pois é uma construção hipotética, um hipoícone, uma imagem-tese, construída por uma série de relações matemáticas por analogia às dimensões do corpo humano. Essas relações deverão ser testadas, observadas, re-examidas e re-elaboradas, produzindo sempre possíveis, outros diagramas, que poderão apontar para idéias de arquitetura, possíveis projetos que guardam semelhanças com o diagrama que os originou e que, porventura, podem se tornar, nesse outro diagrama, ‘coisa’, espaço.

Entre diagramar o espaço e expressar o espaço, portanto, há diferenças significativas. Expressar significa enunciar, manifestar terminantemente, de forma decisiva e indubitável, através de um código específico ou de um determinado veículo. Expressar o espaço significa representar através do desenho, de um tipo especial de desenho que, em última instância, é um fim em si, sinônimo do projeto. Perrone [1993: 58-59], diz que

“o desenho é um duplo da obra arquitetônica em toda a sua envergadura e complexidade”.

Entretanto, o desenho não é o espaço e nem a arquitetura, como chama a atenção Ferrara, ao analisar a maneira de projetar e pensar o espaço do próprio Corbusier:

“Para organizar o espaço, utiliza-se o projeto que se confunde com os elementos que se emprega para aquela organização e com as quais ela é traduzida. (...) Essa tradução faz com que se entenda a linguagem da arquitetura submissa aos veículos expressivos usados, no presente e no passado, para a comunicação das soluções projetivas (...) Entende-se que o espaço é manipulado tecnicamente para adequar-se a uma estabilidade funcional que o submete a um código projetivo absoluto e imutável. (...) Reduzida ao espaço bidimensional, a arquitetura confunde-se com o projeto arquitetônico e o desenho é seu signo incontestável, sua representação”. [FERRARA, 2000: 154]

O pensamento de Corbusier não se limita a essa redução do desenho expressivo sob o código do desenho arquitetônico, mas comporta o desenho como parte do raciocínio do espaço, do pensamento do espaço. Algo mais próximo do desenho como signo que contém a visão de mundo que concebe a arquitetura [PERRONE, 1993: 459], que de forma dinâmica, estabelece relações, testa e experimenta, se transforma no processo de projetar. Essa maneira de utilizar o desenho como meio, como raciocínio e pensamento, é similar ao conceito de diagrama. Diagramar o espaço, portanto, é pensar sobre suas possibilidades como no raciocínio dedutivo, estabelecendo relações, similaridades e analogias, operando por hipóteses, experimentando, e voltando sempre sobre os resultados e até mesmo sobre o próprio processo, diagramaticamente.

A GÊNESE DO ORGANISMO
Por trás da crítica de generalização ideal sobre a qual se funda o Modulor, se esconde a abstração dos modelos matemáticos. Tanto o padrão métrico quanto o padrão polegadas, são representações matemáticas abstratas, são diagramáticas, ou seja, permitem pensar o espaço. O mérito do Modulor está em transformar as dimensões humanas, independente da referência utilizada, num diagrama que contém informação essencial para a concepção do espaço. O próprio Corbusier afirma que as medidas do Modulor são medidas que contém uma corporalidade:

“As cifras do Modulor são medidas que, em si, contém uma corporalidade; elas são o efeito de uma escolha entre o infinito de valores”. [JEANNERET-GRIS, 1950: 60]

Os objetos construídos segundo essas medidas vão fixar os continentes e os prolongamentos do homem. É fundamental assinalar que mais do que a figura humana, Corbusier se baseia no corpo, nas relações proporcionais do corpo humano, para diagramar o Modulor.

Esse ponto de partida pressupõe compreender o espaço como resultado de um pensamento diagramático que advém das percepções da experiência do espaço em si. E isso se dá através do corpo. É através do corpo que se percebe o espaço, é o corpo que informa sobre o espaço. Como diz Alberto Perez-Gomez:

“A percepção é nossa forma de conhecer primordial e não existe aparte o ‘a priori’ do corpo e de seu engajamento no mundo. O corpo é o ‘locus’ de toda a formulação sobre o mundo; não só ocupa o espaço e o tempo, como consiste de espacialidade e temporalidade. O corpo tem uma dimensão. Através do movimento polariza a realidade externa e a torna nosso instrumento de sentido, de significação; esta experiência é, portanto, ‘geo-métrica’.” [PEREZ-GOMEZ, 1983: p.3]

Se esta experiência geométrica do corpo permite realizar as formulações sobre o mundo é porque nessa experiência também flui o pensamento criativo, uma experiência analógica, como definida por Valéry [1999: 135]. É desse modo que define um lugar geométrico, lugar com estatuto de espaço para o corpo e para o próprio Corbusier, ao apontar para um outro possível pensar a arquitetura. Como diz Foucault:

“O espaço das analogias é, no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo. Ele é o grande fulcro das proporções – o centro onde as relações vêm se apoiar e donde são novamente refletidas.” [FOUCAULT, 2002: 31]

Assim como as tecnologias do desenho estão fundadas sobre conjuntos de conhecimentos científicos que se aplicam à concepção do projeto do espaço, que informam sua criação, o Modulor está fundado sobre relações matemáticas sofisticadas que traduzem as dimensões do corpo, do humano, em informação fundamental para a criação dos objetos e dos espaços para esse mesmo homem. Corbusier transforma o corpo em informação. Peter Blake [1963: 138] assinala que

“A concepção de regra para Corbusier está intimamente ligada às leis da vida; e o sistema modulor é uma bela expressão do que ele pensa”.

O Modulor ultrapassa a simples tradução das dimensões do corpo para escalas de relações numéricas, ordenadas matematicamente, que servem como material para diagramar o espaço, mas também apreende a idéia de organismo, a vida desse corpo, seus elementos essenciais, a idéia de célula e de suas possíveis combinações. Aí, de fato, estão as informações que dão vida ao organismo, como sistema de relações, que vão aparecer nos projetos de Corbusier no pós-guerra. No arranjo dos espaços e suas várias possibilidades formais, a figura humana do Modulor é corpo traduzido em números e as possibilidades que apontam, mathesis, e organismo traduzido em sistema de relações, das várias combinações possíveis no momento da criação, gênese.

ORGANISMO E SISTEMA: A ESTRUTURA COMPLEXA DO TODO DIFÍCIL
À idéia de que a cultura está submetida inexoravelmente a um processo de evolução linear e contínuo, conforme a teoria evolucionista darwiniana, agregou-se a noção de revoluções sucessivas, no mais das vezes descompassadas, que se escondem sob o manto linear evolutivo [KUHN, 2000]. O que se apresenta apenas como desenvolvimento natural, esperado na obra de um arquiteto pode trazer em seu bojo transformações fundamentais. A habitação coletiva foi tema de inúmeros projetos de Corbusier desde os anos 20, o que não significa que as unidades de habitação por ele projetadas sejam a evolução correspondente das máquinas de morar. Traços do pensamento anterior reverberam, transitam adiante na contínua revolução de sua obra.

O Modulor como raciocínio diagramático possibilita essa transição de pensamento e foi materializado de forma emblemática, pela primeira vez, na Unidade de habitação de Marselha (1947-1952). A Unidade de Marselha é um teste indutivo diagramático da máquina de morar que incorpora outras qualidades, revelando o confronto entre o tripé função, estrutura, ordem e a tríade relação, sistema e organização. O projeto obedece a uma ordem racional clara, expressa por sua estrutura funcional, baseada em proporções harmônicas. Todo o conjunto está baseado na concepção de módulo objeto, de standarts repetíveis e componíveis, ao mesmo tempo em que a organização desses elementos é orientada por módulos medida decorrentes do Modulor. O edifício pode ser apreendido e assim explicado por sua gigantesca estrutura que abriga um intrincado sistema de organização.

Projetado a partir de 15 medidas básicas extraídas do Modulor, essa estrutura monumental (uma laje de 135 metros de comprimento sobre pilotis) contém um sistema de organização baseado na relação de diferentes elementos construtivos, que estabelecem sua proporcionalidade a partir das mesmas medidas, num processo de formar por analogia das partes com as partes e do todo com as partes. Os módulos-objeto se relacionam com os módulos-medida numa sintaxe singular, analógica. A unidade de habitação é um todo construído por uma lógica ao mesmo tempo racional e orgânica, em que cada parte tem sua função na estrutura definida pelas relações com todo o sistema e com seu próprio modo de se constituir. Como disse o próprio Corbusier, a intenção era fazer a beleza por contraste [JEANNERET-GRIS, 1950: 134-155].

Entre o racional e mecânico e sua contradição não excludente com o relacional e orgânico, resulta uma obra em que mais do que contabilizar a diversidade heterogênea de suas partes e funções é necessário compreender sua complexidade [DE FUSCO, 1985: 481-489]. Que está presente em vários aspectos além de sua gênese modular complexa, objeto e medida: no concreto bruto e cru, que revela as imperfeições do fazer da obra, assim como as marcas da pele mostram as peculiaridades de cada vida humana; na aproximação antropomórfica dos pilotis sob o grande volume com a própria figura do Modulor; no ritmo musical de tempos e contratempos das fachadas que alternam inversões de cheios e vazios, claros e escuros, movimentos para dentro e para fora [JENCKS, 2000]; na mesura da proporção entre suas partes e o todo em confronto com a profusão de suas relações dimensionais variáveis.

A lógica da estrutura auto-portante e independente adquire expressividade através dos brises, cuja função é indispensável para a sobrevivência do organismo e a manutenção do sistema. Por sua vez remetem aos espaços de transição, às varandas e à própria célula habitacional. Apesar da clareza da estrutura e de sua hierarquia dominante, o espaço interno é organizado por combinações de células, um módulo-objeto, que permitem configurar 23 tipos diferentes de habitação, tensionando o interior da estrutura. Todo o invólucro da Unidade pode ser visto como um organismo que tem papel estrutural e funcional ao estabelecer a relação das partes com o todo. Enfim, um diagrama relacional formando uma unidade orgânica e complexa.

Como disse Venturi [1995], a arquitetura é um sistema complexo que se constitui por relações ambíguas, e assim não poderia ser representada e compreendida através da obra de um único arquiteto, desvinculado da própria história da disciplina e da cultura em que está inserida. Mas para demonstrar que houve uma passagem, dentro da própria lógica do moderno, em direção a uma outra racionalidade, Corbusier e o Modulor parecem exemplares. O que não exclui a possibilidade de fazer a leitura dessa transitoriedade na obra de outros arquitetos tampouco a necessidade de retornar ao próprio Corbusier em outros projetos.

Assim, outro exemplo significativo é o projeto de Frank Lloyd Wright para o Museu Guggenheim de Nova Iorque (1957-1959). É sabido via Zevi [1945] que Wright personificou a possibilidade de revisão e humanização da ordem racionalista e seu programa social. Mas é preciso lembrar que a concepção orgânica da arquitetura foi fenômeno paralelo ao racionalismo e que apesar de descendências distintas, intuição versus lógica, comungava a mesma vontade por estabelecer uma relação harmônica do homem com o ambiente [ARGAN, 2001: 71-78].

O museu de Wright, cuja estrutura principal consiste num volume cortado em tira espiralada e contínua, de sentido ascendente, a base menor do que o topo confere forma à imagem de movimento circular excêntrico e para cima. Apesar de excêntrica, a forma espiral também indica um movimento sobre si mesma, para dentro. A relação analógica desse volume maior e do menor, cilíndrico e a lâmina horizontal que os conecta, remetem a uma máquina limpa de engrenagens despidas de suas ranhuras e saliências. Um organismo plástico-dinâmico [ARGAN, 1992] em movimento. Do exterior é inevitável ao olhar, aos olhos da mente em fluxo cognitivo, fazer a analogia da forma espiral com o movimento circular e ascendente. Do interior do edifício, a analogia surge entre fruição do espaço e forma da circulação. A obra sugere a relação entre forma e função aproximando e contrapondo, de maneira dinâmica, o movimento do olhar no espaço e o tempo na fruição do percurso.

No interior do museu, a rampa é forma de tira espiralada e centrífuga que ascende visualmente e recorta uma grande abertura de luz no topo, apontando uma possível continuidade do espaço e do movimento. A mesma rampa, desde cima, é função que impele o movimento na direção contrária, indicando o percurso centrípeto descendente. O movimento ascendente da forma é reafirmado e duplicado pela circulação vertical do elevador, a parte mecânica do todo, a idéia de máquina contida dentro organismo. O centro do espaço interno é um grande vazio sobre o qual se pode debruçar da rampa, mas o olhar do usuário é centrifugamente forçado para fora rumo as paredes que servem de suporte para as obras. O espaço é um campo de forças, comportando movimentos em todas as direções, para cima, para baixo, para fora e para dentro, simultâneos e contrários, percurso e olhar.

A estrutura forma um sistema orgânico em que parte e todo, na organização formal que suplanta a funcionalidade, estão em relação na fruição do espaço. O Guggenheim de Wright, comportando a pureza da ordem e a precisão da forma, absorvendo a máquina como imagem e como elemento funcional, representa ao mesmo tempo uma mudança para um modo de concepção espacial que se constrói não por uma lógica, mas por uma analógica. A analogia é justamente a capacidade de combinar coisas e idéias que podem parecer equívocas ou obscuras. Ao contrário da lógica racional e determinista que busca o significado exato, a analogia comporta a multiplicidade de representações e significações. O edifício materializa inúmeras imagens, por vezes contraditórias, que vão do determinismo da ordem e da máquina a indeterminação do campo de forças e do movimento. Essa complexidade suscita, no dizer de Valéry, relações

“entre coisas que a lei de continuidade nos escapa”. [VALÉRY, 1998: 23-24]

Ainda segundo ele, essas

“analogias resultam do fato de que uma impressão pode ser completada de duas ou quatro maneiras diferentes. Uma nuvem, uma terra, um navio, são três maneiras de completar uma certa aparência de objeto que surge no horizonte sobre o mar. O desejo ou a expectativa precipita no espírito um desses nomes”. [VALÉRY, 1998: 37]

O que se pode supor, antes de concluir, é que o diagrama, o raciocínio diagramático, afinado com a analogia, permite evoluir o processo associativo em direção aberta, próximo da configuração da racionalidade apoiada no triângulo organização, relação e sistema. Passa-se do pensamento aparentemente linear, que se apoiaria na estrutura matemática do módulo para um pensamento que opera por relações sistêmicas abertas. O que corresponde, segundo Ferrara em sua proposição Por uma semiótica visual do espaço [2002: 94-115], a categoria da

“visibilidade, da qual decorre a elaboração reflexiva do dado visual, transformando-o em fluxo cognitivo”. [FERRARA, 2002:101],

em contraposição à visualidade, que corresponderia à constatação passiva do fato visual. Mais adiante ela explica:

“A construção dessa visibilidade supõe enfrentar o espaço como alteridade desafiadora que exige resposta, não para ser organizado a partir de um programa a priori, mas para ser descoberto e revelado pelo próprio ato projetivo, apoiado em três pilares: a analogia, o diagrama e a experimentação que estabelecem, para a atividade projetiva, as etapas ou elementos básicos do processo de raciocínio que lhe é característico: arquitetar com os olhos da mente (PEIRCE. C.P. 3.556)”. [FERRARA, 2002: 107]

Nos anos 40, Corbusier afirmou haver um tipo de espaço resultado de certas qualidades arquitetônicas, que chamou de espaço indizível. Esse espaço, no campo da visibilidade, é o fenômeno acústico no domínio da forma,

“um fenômeno de concordância se apresenta, exato como uma matemática, verdadeira manifestação da acústica plástica”. [JEANNERET-GRIS, 1954, 217]

A busca de Corbusier por um sistema de medidas para a criação livre da arquitetura equivalente aos sistemas musicais se convertia em forma acústica. Segundo ele, a orelha deveria ouvir a forma e o olho escutar a música das proporções visuais [JEANNERET-GRIS, 1954, 154; 264-268]. Essa analogia entre som e espaço remete à categoria da visibilidade, exigindo uma reflexão sobre o espaço, que muitas vezes também se torna indizível.

No período do pós-guerra, talvez o exemplo que represente de modo mais radical essa mudança da concepção, de um espaço programado em direção a uma concepção que comporta o ato projetivo como relacional e sistêmico, seja a capela de Ronchamp (1950). Suas linhas curvas e as formas arredondadas e inexatas, e as diversas referências contidas na obra, declaradas ou não pelo arquiteto, inspiraram variadas interpretações. Na época em que fez o projeto, meados dos anos 40, Corbusier tinha em sua prancheta um casco de caranguejo, que segundo ele, tomou forma na cobertura [LE CORBUSIER, 1957: 89].

Jencks [2000: 263-267] detectou formas similares àquelas que aparecem na capela em experiências precedentes do arquiteto. Na mesma época, os anos 40, Corbusier fez uma série de obras plásticas, quadros e esculturas que batizou de Ubus, fazendo referência a obra Ubu Rei de Alfred Jarry. Eram curvas e bolhas, volumes abstratos, e biomórficos, colocados em relações desordenadas, quebrando o purismo de suas convicções formais. Essa forma que se assemelha a uma orelha, torna-se dominante em Ronchamp. Jencks [2000: 267] diz que apenas essa analogia do formato da orelha com o fenômeno acústico seria suficiente para considerar a obra como precursora do pós-moderno.

A capela de Ronchamp é um diagrama relacional de formas organizadas por uma geometria como fenômeno visual, que contém regras que abarcam harmonia e poesia [JEANNERET-GRIS, 1954: 221]. À analogia entre as formas que constroem todo o objeto, curvas e suas variações, combinações que fazem coexistir partes de umas nas outras [VALÉRY, 1998], soma-se outra dentro da obra do arquiteto, no decorrer de seu percurso plástico, que indica uma volta sobre si mesmo, sobre o pensamento em si, um retorno diagramático. Entretanto, não é um retorno que leva ao mesmo lugar, mas inaugura uma novidade, aponta uma mudança na trajetória do arquiteto. A base matemática do Modulor, a malha ortogonal de origem desaparece em meio a sucessivas distorções variadas. Corbusier desafia a quem queira determinar as dimensões do espaço sem medir [LE CORBUSIER, 1957: 118].

O arquiteto que amava as máquinas e idealizava as máquinas de morar, declarou aquilo que poderia ser a divisa de um movimento:

“A lição da máquina está nas relações de causa e efeito. Pureza, economia, o encontro da sabedoria”. [LE CORBUSIER, 1987: 115]

Depois da guerra e de sua alargada experiência, dizia algo que poderia representar um divisor, uma alteração na direção do movimento:

“Nós aprendemos que tudo está arranjado de acordo com princípios concernentes ao todo; que todo organismo é um tipo de elo numa cadeia de variantes em torno de um eixo entre dois pólos, variantes que respondendo a um único fator estabelecem uma série; um sistema coerente varia de acordo com incontáveis possibilidades de combinações”. [LE CORBUSIER, 1987: 175-177]

A CONTRADIÇÃO DA COMPLEXIDADE
E agora voltando a Venturi, se pode perceber que, se por um lado Complexidade e contradição abre várias frentes para pensar a essência da arquitetura e aponta para a pluralidade de possibilidades, então confinadas aos moldes do moderno, por outro sua teoria encontra um débil paralelo até nas suas próprias obras. Segundo ele próprio, depois da publicação de Complexidade e Contradição, compreenderam (ele e sua equipe) que poucos de seus projetos eram complexos e contraditórios, em suas qualidades puramente arquitetônicas:

“Não havíamos sabido introduzir em nossos edifícios elementos de duplo funcionamento ou atrofiados, distorções circunstanciais, artifícios pragmáticos, exceções memoráveis, diagonais excepcionais, coisas em coisas, complicações amontoadas ou contidas, espaços residuais, espaços redundantes, ambigüidades, inflexões, dualidades, todos difíceis ou fenômenos de tanto-como. Em nossa obra escasseava a inclusão, a incoerência, o compromisso, a acomodação, a adaptação, a supercontiguidade, a equivalência, o foco múltiplo, a justaposição ou bom e mal espaço”. [VENTURI, 1978: 159]

A justificativa era de que não haviam tido a oportunidade, não haviam recebido encomendas de projetos em que pudessem colocar em prática aquilo que tanto haviam saboreado em pensamento, como teoria. De fato, sua arquitetura mais radical seria em defesa da decoração, da máxima funcionalidade dos galpões de estrutura simples e limpa, de espaços vazios, funcionando como suporte extremo, fachada para a comunicação e a propaganda.

Ao invés de restringir a invenção de Corbusier como uma representação tardia dos ideais modernistas das vanguardas das primeiras décadas do século, é possível compreendê-la em sintonia com as transformações que se iniciam após a segunda guerra mundial, principalmente nos campos da ciência e das tecnologias de informação. Transformações que vão desembocar, nos anos 90 e início do século XXI, em outras concepções do espaço, do objeto e do próprio humano.