finais

A arquitetura oscilando entre 0s e 1s


O objetivo desta investigação não era outro senão procurar explicações para o papel dos meios digitais na produção da arquitetura contemporânea, pensamento e gênese. Nessa busca procurou encontrar antecedentes que permitissem abordar o digital como parte do processo de evolução da arquitetura. E ainda buscou estudar em que medida a natureza virtual desse suporte que constitui um espaço de interações e simulações, atua no processo de crescente complexidade da arquitetura no panorama da cultura e dos processos criativos. O percurso da pesquisa procura demonstrar como o processo evolutivo do pensamento arquitetônico traduzido em teoria, experimentação e obras construídas atinge mais uma etapa de sua evolução contínua, através da tecnologia digital de processamento de informação.

Com a evolução das ferramentas de representação da arquitetura, com a transformação do suporte em espaço dinâmico e interativo das simulações, a própria noção da arquitetura se renova, colocando em questão a posição do arquiteto. Agora, ele se confronta com máquinas como sistemas significantes que funcionam como instrumentos de mediação que devem ter seu potencial criativo explorado. Compreender que o suporte digital tem antecedentes nas tecnologias numéricas desde as técnicas do Renascimento, pode auxiliar os arquitetos a encontrar, não só, novas possibilidades projetivas nos enredamentos maquínicos, mas sobretudo, a produzir outras condições de leitura da inserção cognitiva da arquitetura contemporânea.

Assim, procurou-se tecer os conceitos que permitissem realizar a leitura dos procedimentos que delineiam a arquitetura maquínica. Desse modo, analisou-se como a arquitetura enfrentou e superou sua dimensão funcional, ou de impacto visual, para enfrentar a elaboração diagramática do pensamento em sua própria dinâmica. Ou seja, da visão estática da perspectiva aos desdobramentos das simulações interativas, ou ainda, do paradigma mecânico ao maquínico, uma vez que não se trata da técnica do saber fazer, mas da tecnologia do saber pensar. Passagem do mecânico baseado na função, na estrutura e na ordem, para o maquínico regido por relações entre sistemas e organizações.

Em consonância com as transformações da cultura que levam a uma nova racionalidade, a arquitetura se constitui como um todo difícil construído sobre complexidades e contradições de seus próprios modos de pensar e fazer, teoria e projeto. O diagrama da arquitetura maquínica se faz no movimento dinâmico dos desdobramentos analógico-digitais Seus procedimentos se baseiam em conceitos que assumem, no fluxo da evolução, configurações diferentes a cada momento, mas reconhecíveis como continuidade. Nesse fluxo opera-se com a capacidade relacional do processo da cognição por analogia; com o pensamento diagramático, indutivo e experimental que torna visíveis aos olhos da mente as hipóteses projetivas em desenvolvimento; com o processo dialógico do fazer que transita entre material e procedimento e, finalmente, com a base sintática que qualifica a obra, expondo sua própria consecução projetiva e experimental. Embora nem sempre explícitos teórica e praticamente, esses procedimentos estiveram sempre relacionados à arquitetura, da geometria à tecnologia da informação.

É assim que no cerne do Moderno surgem exemplos de arquiteturas realizadas segundo diagramas relacionais. É o caso do Modulor como tecnologia analógico-digital, numerização do corpo para propor uma arquitetura como um organismo baseado em sistemas de relação. Esse mesmo princípio pode ser aplicado em outras obras onde a analogia se faz com sistemas dinâmicos baseados em relações orgânicas, como na obra estudada de Wright. É desse modo que o par material / procedimento passa pela experimentação com os processos de Gaudi para alcançar a forma, ou da transformação da matéria informe como concreto em estrutura, desembocando na relação análise / síntese. O desenvolvimento dessa experiência numeriza a função, transformando o programa da arquitetura em informação numérica, como nas proposições de síntese da forma de Alexander, que são levadas às últimas conseqüências nas gramáticas da forma de Mitchell, Stiny e Knight, baseadas em sintaxes computacionais.

Se o digital já estava sendo processado como pensamento e procedimento, quando se desenvolvia uma arquitetura que passava do paradigma mecânico para o maquínico, o que permanece na passagem do Moderno para a modernidade é o próprio Moderno como ruído, como descontinuidade:

“A modernidade escapa dos domínios conceituais para encontrar o cotidiano fragmentado e complexo que é decorrência das conquistas tecnológicas comandadas pela razão. (. . .) A modernidade sugere uma outra postura epistemológica na qual o homem e sua razão enfrentam e aderem a um mundo em transformação constante mas indeterminada, porque depende da mútua interação homem / natureza e das possíveis, diversas, mas não necessárias respostas provocadas por essa interação. No ápice da modernidade, as relações sociais e culturais se mundializam; o homem conhece mais, está seguro da sua real capacidade de conhecer, mas está cada vez mais incerto.” [FERRARA, 2000: 173]

E é por esse caminho que se chega a arquitetura de Peter Eisenman e Frank Gehry. A arquitetura de Eisenman se faz sobre o pensamento diagramático que antecipa a utilização dos computadores e encontra no digital o espaço ideal para sua gênese, assim como a postura experimental em relação aos materiais de Gehry se mantém quando ele enfrenta o suporte digital, possibilitando-lhe alcançar complexidades não pressentidas. Como vimos, a interpretação dessas complexidades revela, de fato, uma arquitetura que se lança pelos espaços das virtualidades. É no confronto com o computador que sua arquitetura supera os materiais e pode mirar o paradigma maquínico como seu referencial e revelar que pensamento e gênese da arquitetura podem ser deslocados para um tempo e um espaço simultâneos em que todos os saberes convergem sobre a base sintática das tecnologias numéricas. Espaço e tempo das simulações e das interações entre analogias, experimentações e diagramas digitais.

Se o percurso do trabalho pareceu muitas vezes sem destino, talvez seja porque o objeto que se enfrentou é de natureza instável e turbulenta e representa as incertezas da modernidade. Nos fluxos oscilantes da matéria líquida do digital, o que se procurou foi dotar a experiência de um sentido mais profundo do que o usual. E nas tessituras dessa rede, não teria sido possível imaginar que se chegaria a esse lugar, trilhando os caminhos que foram traçados. Ao se chegar ao final da aventura de enfrentar um objeto que problematiza os cânones da disciplina, não poderia haver nada mais apropriado do que a dúvida de Argan:

“Neste ponto só se pode colocar em discussão o sentido da vivência humana no mundo: é preciso saber se tudo aquilo que houve foi projeto ou destino, se o homem construiu sobre os próprios desígnios ou se, pensando fazê-lo, fez algo que já estava dito e decidido.” [ARGAN, 2001: 12]
A arquitetura oscilando entre 0s e 1s